A Fome

 

 

Havia em um povoado perto de uma ribanceira que margeava a um rio, um casal muito pobre de agricultores. Este casal não tendo o que comer (pelo fato de a colheita ter sido muito fraca, de­vido a pouca chuva que houve no ano), pediu a Deus que lhes des­sem alguma outra condição de trabalho, para poderem conseguir algum dinheiro, e, desse modo, comprarem alimento, pois, estando eles em uma situação de desespero — por já estarem desnutridos —, só viam como única saída clamar a Deus por misericórdia, para que, dessa forma, o Misericordiosíssimo os salvasse da morte triste e infeliz em meio à seca:

— Ó Senhor! — exclamaram. — Tende piedade de nós! — im­ploraram. — Estamos a morrer de fome (não porque não trabalha­mos), mas porque tendo sido este um ano fraco de chuvas, nós es­tamos a padecer de falta de alimento, e não temos dinheiro para comprá-lo no mercado, que fica a uma distância muito longe daqui até a cidade.

Por causa disso, observando o que estava a se passar, o Clemente disse para um anjo ir ao encontro deles. Por sua vez, o anjo obede­cendo à determinação do Creador, foi até o casal de agricultores, e, como a um trovão, apareceu-lhes e falou:

— Vejo que vós clamais a Deus para que lhes deem o que comer. — comentou. — Todavia, vós se esqueceis, de que não são dignos de recorrerem ao Creador pela falta de chuva que os castigam com a seca! — acusou-os. — Pois, estando vós agora em uma situação difícil, se lembraram de ter além das vossas necessidades, alguém que lhes é mais poderoso e fiel.

Por esse motivo, o homem notou a maneira rude como o anjo lhes falou, e o tom de agressividade com o qual ele se comunicou, e retorquiu-o:

— Mas eu e minha mulher sempre fomos gratos ao Senhor, pelo o que plantávamos e colhíamos. Nunca deixamos de dar graças a Deus, por Ele nos ter abençoado com a sua providência divina, que nunca nos desamparou. Portanto, peço-lhe, por favor, que não nos insulte com despeito e escárnio! Já que, somos dignos aos olhos de Deus, assim como, Deus nos é santíssimo na sua bem-aventurança, por através de nós, fazer o trabalho do nosso sustento.

Diante disso, o anjo, que os observava com muita acuidade e ao mesmo tempo certo desprezo, ao casal de lavradores, perguntou-lhes com indiferença, após contextualizar a situação difícil pela qual eles passavam:

— Tu, ó homem, e a tua mulher, são obras das mãos do Creador! — afirmou apontando-lhes o dedo indicador. — Visto que, Ele é quem vos creou e Ele é quem vos dá a vida, como também, de vós a tira. Por que a Deus vós peçais por alimento, se Ele sempre vos alimentou o espírito através da Sua palavra?

— Pedimos a Deus vida! — revidou o homem. — Porque é Deus quem sempre nos deste; e somos gratos a Ele, por Ele nos ter dado sempre o que comer. Queremos viver para que possamos servi-Lo! Não só pelos nossos esforços de poder laborar a terra que nos alimenta o corpo. Mas, também, além de tudo, através das nos­sas boas obras! Para que, dessa forma, Ele nos abençoe com a sua palavra, e, por conseguinte, com chuva e boas colheitas. Portanto, é desse modo, que seremos dignos de sermos benditos entre todas as obras da sua creação. Visto que, por causa de nossos pecados, esta­mos a ser castigados com esta seca, que nos ameaça à vida, e por isso, pedimos a Deus que nos conceda a sua misericórdia e perdão.

À vista disso, o anjo, vendo no homem uma serenidade e fé ina­balável, respondeu-o um tanto quanto apático:

— Tu tens ó homem muita fé! — disse-lhe o anjo. — Pelo o que vejo, percebo em ti uma força de espírito inabalável, e uma feroz vontade de viver. Mas, ainda assim, eu o tenho por inimigo! Uma vez que, tu queres que Deus prossiga em conceder-lhes o dom da vida. E como eu já te disse: é Deus quem deve decidir se vós deveis ou não continuar a viver. Se for da vontade d´Ele que vossos esfor­ços sejam recompensados, então, eu vos deixarei viver. Caso contrá­rio, levá-los-ei para a morada dos mortos, ou seja, fá-los-ei tornarem a terra a qual durante a vida toda vós cultiváveis, ao atravessar vossas almas para a outra margem do rio.

Todavia, repentinamente, notou a mulher ser o anjo o adversário do casal, isto é, o arcanjo da morte, de forma que, corajosamente, o interpelou:

— Quer dizer que tu não queres que nós continuemos a perdu­rarmos? — contra-argumentou a mulher de maneira inquisitiva. — Oras ceifador! — insinuou a mulher de modo afoito. — Nós somos tão dignos da vida quanto tu gostarias que não fôssemos. — disse demonstrando sagacidade. — Já que, tu a nós sacaneias com as tuas duras palavras, e debocha de nós com o teu desprezo, por se sentires superior aos nossos esforços em tentar sobreviver, pelo fato de es­tarmos quase mortos pela fome que tu, pelo que vejo agora, nos causaste, ao impedir que chovesse em nosso arraial.

— Ó mulher! — exclamou o opositor da vida. — Antes mesmo de seres mulher, tu és parte da minha alma! Por que me acusas pelo o que lhes falei como sendo algo ruim?

— Eu e meu marido somos servos do Creador! — afirmou a mulher convicta. — E não aos que o servem. — contrapôs-se ao anjo. — Tenho por Ele o meu único Deus. — salientou com bra­vura. — E tenho por meu marido, o meu único companheiro. — disse com orgulho. — Por que tu queres nos destruir?

Destarte, o arcanjo, refletiu sobre o que estava a ocorrer, de ma­neira que os olhou com um olhar severo que ardia em chamas, e disse-lhes com uma voz que se assemelhava a um trovão:

— Vós sois dignos de Deus! — afirmou o espectro esquelético com certo descontentamento. — Mas tu mulher, és muito atrevida e debochada. — admoestou-a o anjo repudiando a sua conduta. — Haja vista ser tu carne feita da costela do homem. — constatou. — E sendo o homem feito do barro, ou seja, da matéria, por que tu o tens em tanta estima, se vives para servi-lo? — interpelou com certo atrevimento. — Não deverias, diante das tuas dificuldades, aban­doná-lo a virar-se sozinho, e procurar alguém melhor que te desse o que sobreviver? Oras, não devias de ficar aí debaixo de sol quente, rasgando a terra a procura de alimento, enquanto que poderias viver como uma rainha se fizesse comigo a um acordo, oferecendo-me em sacrifício, por que não, o vosso esposo?

— Sou sim a carne que ao meu marido lhe dá o sustento das pai­xões. — retorquiu a mulher com afronta ao ceifador. — Porquanto, é Deus quem em nós faz a sua morada! Pois, é Ele quem nos supre os pulmões, com o seu fôlego divino que nos alimenta com a vida. E é a Ele que nós temos por Deus único e verdadeiro nas nossas ora­ções. Portanto, não me cabe decidir deixar ao meu marido diante da dificuldade que passamos. Mas, por outro lado, tenho que estar ao lado dele — pelo motivo de eu ter sido feita da sua costela — para que, desse modo, eu possa ajudá-lo a superar essa fome que nos ameaça à existência, e a ti, que nos ameaça com sua foice matar.

Em razão disso, o emissário, ficou incomodado pela forma que a mulher lhe respondeu, pois, viu nela fidelidade ao seu marido, tanto quanto, também, muita coragem em resistir ao mal que consumia as suas vidas, através da fome.

Ainda sim, disse o ceifador:

— Oras mulher! — retorquiu com deboche. — Tu és ao teu ma­rido temente, como és a Deus. Por que tu não lhe fazes, o que Deus te fez para fazer: tentá-lo através da idolatria a praticar barganha com falsos deuses, que exigem tributos, isto é, sacrifícios? Desse modo, vós podeis conseguir o que desejais, quer dizer, prolongar as vossas vidas na Terra. Já que, tu não queres me dá-lo em oblação.

— Sou sim temente ao meu marido — corroborou a mulher com o anjo — assim como sou a Deus! — afirmou com ardor. — Por que ainda que eu seja filha das sombras (sou antes de tudo), a von­tade de Deus que no homem se esconde mediante o desejo de se realizar. Mas que se revela, quando o homem mediante o matrimô­nio, se casa, e, dessa forma, encontra o seu equilíbrio através do trabalho.

Logo, percebendo o Misericordioso o que estava acontecendo entre o anjo que Ele enviará (e ao casal que estava a passar fome), decidiu por mandá-lo voltar, haja vista ele não ter conseguido, com a sua astucia, tentá-los fazer renegar a sua fé, ao propor-lhes oferecer sacrifícios a deuses estranhos, que os manteriam vivos diante das dificuldades, mas que, por outro lado, cobrariam um preço alto pela vida estendida, ou seja, a morte sem a salvação das suas almas, que só é possível, através da fé e da oração no Deus maior:

 — Tu anjo Meu! — disse o sapienterno. — Doravante voltes para casa onde te confinei a ficar. — ordenou com autoridade. — Isto é, no lodo infernal do abismo onde é a tua morada! — salientou. — Pois sendo Eu o vosso Deus e o vosso Creador, tens tu que Me obedecer. — enfatizou o Ancião dos Dias. — Por isso te digo: que a estes dois tu não consegues abalar a fé, que é inquebrantável diante da tua sagacidade em tentá-los apostatar.

— Sim meu Senhor! — respondeu o anjo um tanto quanto aca­brunhado. — Volto ao meu reino porque eu sou o guardião do co­nhecimento dos teus mistérios. — revelou o arconte o seu segredo. — Portanto, tenho que ao Senhor sempre obedecê-Lo, por já saber ser o Senhor o meu Creador e único Deus verdadeiro. Conquanto, estarei sempre pronto a cumprir o que Lhe aprouver que eu faça. — finalizou o anjo após reverenciar a glória de Deus, que cintilava no céu como a uma estrela.

Por consequência, voltou o anjo para o reino abismal, isto é, o reino da morte, assim como foi-lhe ordenado por Deus. De fato, veio o Santíssimo até o casal por meio de uma aparição majestosa, como a luz do sol, e lhes falou:

— Vós sois dignos de Me servirem (não só em corpo, com tam­bém, em espírito). Razão pela qual vos reconheço como sendo parte da minha sabedoria eterna. Em ti ó homem, ajo como luz! Pois é por meio de ti que brilho como chama eterna no seu interior! E através de ti existo em um só corpo e sou um só espírito, que possui múlti­plas almas pelas quais formei a humanidade. Doutra sorte, em ti mulher, ajo como sombra! Pois é por meio de ti, que venho a existir como homem, por ser de ti, que venho a nascer em corpo, e, dessa forma, posso viver nesta Terra como verbo divino que se fez carne, através de toda a humanidade.

— Senhor! — dirigiu-se o homem ao Creador em lágrimas. — Sempre fomos os seus servos (não porque Te temíamos como sendo o opositor que pode e nos quer castigar). Mas, por nossa parte, o temíamos, por respeito em reconhecer ser o Senhor, feito em nós um só corpo e um só espírito! Pois, de Ti sempre colhemos bons frutos. Porque em nós, fizestes morada — por meio da consciência Crística que nos abençoa eternamente —, pela chuva de sabedoria que nos mandaste sempre do céu.

Dessarte, a mulher, complementando o que o homem discorreu ao Creador, continuou ao também glorificá-Lo:

— Sou também, diante dos vossos olhos, ao Senhor espírito! — disse ela com os braços erguidos. — Não por Lhe ser como luz, mas por Lhe ser como a chama da sabedoria da sua onisciência. Por meio de mim, o Senhor traz a vida à carne, para que através do corpo, o Senhor edifique a obra da sua vontade aqui na Terra. Sei que peca­mos ao nos unirmos em carne, quando, em teu reino celestial, su­cumbimos aos nossos desejos inferiores. A serpente com a tua lábia afiada nos enganou, ao nos induzir a copular, assim como tentou nos ludibriar, ao nos instigar através da sua astucia, negarmos a fé que temos no Senhor.

E vendo Deus neles tamanha sabedoria, a si mesmo se reconhe­ceu como sendo a própria expressão da sua vontade no homem e na mulher. De maneira que, satisfeito de ter ambos a Ele como Deus único e verdadeiro — assim como o anjo da morte —, retorquiu-lhes o Clemente da seguinte forma:

— Ó homem! Ó mulher! — disse-lhes o Creador. — Enxergo-Me refletido em vós! — aludiu. — Pois sendo vós fruto da minha onisciência, são ambos partes do meu ser. Tenho sido muito satis­feito em minha obra! Pois, ainda que Eu Me faça adversário para que teste o espírito no corpo, estas almas são mais forte do que o adver­sário que me fiz ser. Tenho grande alegria de poder-lhes restituir a vida que vós já estáveis quase a perdê-la. Porque vos darei não só do que comer — o pão da vida — como também, o que beber — da fonte da eternidade. Por cuja causa vos será (não só o alimento da carne e nem só a bebida que a ela satisfaz a sede). Outrossim, o ali­mento que vos darei, será aquele que nutri-los-ão sempre com o cálice sagrado da bem-aventurança, que é viver na verdade, na justiça e no amor de Deus! Pois, sendo vós fruto de minha obra e sendo eu o obreiro que a ela alimento mediante a minha palavra, estarei sem­pre em vós como Espírito Santo descido do céu! Portanto, desse modo, sempre lhes farei morada, para que Eu possa assim ver-Me como onipresente em justiça e beleza. E então, poderei contemplar as maravilhas que o Eterno é por si capaz de fazer, e em si próprio reconhecer, pela onipotência das tuas obras.

Desse modo, por fim, o Creador restitui-lhes a vida, que Ele quase a tinha tirado através da fome, que passava o homem e a mu­lher no lugarejo. O casal continuou a viver conforme a vontade de Deus, e se amavam mutuamente como a dois pombinhos que nunca se separaram. Viu Deus que sua obra era boa, e que havia no cora­ção do homem, a luz que irradiava a justiça e a beleza; e no coração da mulher, a ternura e a força de vontade de poder estar sempre ao lado de seu marido (mesmo nas dificuldades e contratempos que os desafios do cotidiano lhes imputavam passar).

Finalmente, falou o homem:

— Graças e louvores Te presto, ó poderoso e misericordioso Creador! Visto que, tendo fé em Ti, tornei-me conhecedor do Bem e do Mal junto a minha mulher, ao confrontarmos a morte que nos apareceu feito a um trovão, e que nos quis, com a sua sagacidade, nos levar para o seu reino abismal do esquecimento. Portanto, de agora em diante, sempre lembrarei que somos por ela observados, e que se não cuidarmos, sucumbiremos ao seu suborno, ao confiarmos as nossas esperanças em acordos que nos trarão o mal, ou seja, a servidão aos falsos deuses estranhos, que sempre nos tentam ludi­briar. Além do que, mesmo diante das intempéries que passamos, aprendemos que não devemos jamais deixá-lo de adorar, visto que, é o Senhor o esplendor de toda a glória que a no céu, como, de igual modo na Terra.

— Também Lhe presto a minha reverência ó Creador de todas as coisas! — disse a mulher em lágrimas. — Na dificuldade que eu e meu marido passamos, reconheci ser Tu, ó meu Senhor, a força divina que nos ampara diante das dificuldades e tentações às quais estamos sujeitos, pois, é no sofrimento, que o homem e a mulher encontram em Deus a perseverança de continuarem firmes, através da fé, oração, e determinação dos nossos esforços. Por isso, te peço que nunca nos abandone! Porque sei que somos condicionados a fazer o bem, tanto quanto, o mal. Ademais, ainda que eu e meu ma­rido saibamos que o Senhor é quem esteve por de traz do anjo da morte — ao fazê-lo nos tentar a cometer apostasia —, temos a cer­teza que ao confiarmos a ti as nossas obras, teremos sempre os nos­sos pensamentos estabelecidos, e, dessa forma, a nossa salvação e reencontro no céu.

Daí em diante, o Creador abençoou-os com chuva, e, desde en­tão, esse casal nunca mais passou fome por falta de água que regasse as suas plantações, ao demonstrarem mesmo nas dificuldades, serem justos aos olhos de Deus. Porquanto, a fé os salvou de serem mortos pela seca, que era a maneira pela qual Deus os testou mediante o seu emissário, para ver se eles eram mesmo tementes a Ele, e dignos da sua infinita misericórdia. Amém!

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