O Anacoreta

 
 
 
 
Houve em uma época sombria, onde o materialismo pautava a vida das pessoas, em que os populares comentavam ter ha­vido um homem que foi muito temente a Deus, e que mesmo em suas dificuldades não se deixava desanimar, de forma que na solitude de sua alma, procurava se espiritualizar, ouvindo ao seu silêncio in­terno. Além do mais, todos os dias ele agradecia por estar vivo, ainda que diante dos seus infortúnios pessoais: a pobreza, o aban­dono e a miséria, como também, a maledicência que ouvia dos tran­seuntes de mau caráter falarem de si, devido a sua condição de indi­gente e desabrigado, não se deixava esmorecer. Todavia, de modo equivalente, o andarilho continuava firme na sua devoção, a ponto de nunca se permitir deixar-se abater, mas, ao contrário, ele insistia em persistir na sua peregrinação.

Embora esse homem fosse desacreditado e desamparado pelos seus próximos, continuava em sua fé e abstinência da vida mundana a Deus louvando-O e agradecendo-O, pois, ele tinha a certeza de que tudo o que ele estava passando, era para o seu bem. De fato, num triste outono, aconteceu desse homem vir a falecer (devido à contra­ção de uma pneumonia), no entanto, antes da sua morte, veio até ele um anjo brilhante como as estrelas do firmamento, e disse-lhe:

— Ó cenobita! Tu és bendito entre os homens! Dentre todos os males pelos quais passaste, tu os suportastes com fé. E na sua misé­ria e infortúnio, nunca reclamaste ou se queixaste. Ao Senhor Deus tu sempre agradeceste e o louvaste! Além disso, em seu coração, não tivestes ódio e nem rancor, outrossim, ele tão puro quanto a mais bela pluma de uma pomba branca, que já mais antes havia existido.

Por conseguinte, o homem já se desfalecendo de suas forças, vendo ao anjo, comentou:

— Senhor! — exclamou. — Vieste me buscar? — interpelou-o. — Estou aqui, pronto para partir! De tal modo que, a vida que vivi, não foi cheia de aventuras ou de algum brilho e alegria. Sendo eu um homem pobre, nunca consegui fazer muito, e o pouco que eu conse­guia, era para o meu sustento. Os meus próximos sempre me julga­ram, e me diziam eu ser um imprestável e um incômodo e vergonha para eles. Eu os deixei, e decidi ir para o mundo, de maneira que sobre a orientação divina, eu pudesse conseguir ajeitar a minha vida, e me integrar como parte da sociedade. Contudo, Deus sempre me provou! E me deixou nas condições em que me encontro hoje. Es­mola pedi, humilhado fui. Tentei por todos os meios um trabalho, mas me foi negado. Doutra forma, me esforcei para fazer-me ho­mem de negócios, mas saí no prejuízo. O que eu posso pedir a Deus, senão, para que Ele me perdoe pelo o que eu Lhe fiz ou deixei de Lhe fazer de bom ou ruim? Se eu O ofendi, peço que Ele me ab­solva antes de eu parti. Além de tudo, sendo o Altíssimo justo, a mim deu o merecido! E, sabedor das suas vontades, a todas eu as cumpri e nunca reclamei.

Não obstante, o anjo ciente de tudo o que se passou com aquele asceta, redarguiu-lhe:

— Tudo o que tu passaste em tua vida durante a tua jornada neste mundo, foi um teste que Deus lhe deu, para que tu pudesses ascender aos céus! Porque, de modo algum, tu não se deixaste sedu­zir pelo pecado, quando este lhe importunou a alma, e nem blasfe­mou contra Deus, quando estava na miséria, com fome e sem ter aonde dormir. Mas, por outro lado, ao Senhor tu sempre o louvaste, e abençoaste pelos dias que Ele te concedeu. Portanto, agindo desse modo, vendo Deus ser tu um homem bom e fiel a Ele, me mandou para que eu viesse a ti te buscar! De tal forma que, não há mais nada para tu fazeres neste mundo, a não ser morrer em corpo, para que ressuscites em espírito no céu.

Todavia, o homem já fraco e com pouco fôlego para falar, ao anjo replicou-lhe:

— Eu sou grato a Deus por ter-me mandado o senhor para vir me buscar! Não sou digno de tamanha honra. Entretanto, agradeço a Ele por ter me dado à oportunidade de poder ter vindo a este mundo, e ter passado por tudo o que passei. Afinal, agora compre­endo que sou antes de tudo existir, espírito! E que na carne, sou tentado pelos desejos as coisas santas rejeitá-las, e a fazer o que de mais desdenhoso e profano pode um homem cometer, quando, afastado das dádivas do Creador — a virtude, a honra e a beleza — o ser humano se encontra, ao se deixar seduzir pelo mal.

— A sua estadia neste mundo, ó homem, serviu para tu saberes, que cedendo às tentações mundanas, o ser humano só pode se cor­romper! — explanou-lhe o anjo sobre a sua condição mortal. — De tal maneira que, sendo o espírito na sua essência santo — por ser o fôlego de Deus na matéria —, o mesmo deixou ao plano divino para poder encarnar. Afinal, quando a graça se encontra caída neste mundo, como uma estrela cadente, busca se satisfazer (não da sua essência divina que é a luz). Não obstante, por sua parte, descobre na sua sombra, por assim dizer, o poder de se viciar de prazeres por meio do corpo, que o mal incuti na sua alma, através da tentação, oferecendo-lhe satisfações imediatas, sendo daí a razão pela qual a mesma se embriaga nas vicissitudes ordinárias da vida, procurando no gozo da carne, suprir a sede por respostas que demanda o seu caráter, por não buscar na senda da justiça e da retidão, se orientar.

Em razão do que foi-lhe falado, o homem, já moribundo, disse ao anjo:

— Senhor! — exclamou. — Estou morrendo. — observou. — E peço a Deus que me ampare quando eu deixar a este corpo. Doutra sorte, gostaria de ter feito mais enquanto encarnado, e edificado obras admiráveis para poder deixar marcado a minha presença du­rante a passagem nesta vida terrena, ou seja, um legado belo e dura­douro. Mas Deus assim não o quis. Por isso, deixei aos meus próxi­mos e fui tentar a sorte pelo mundo, todavia, este me rejeitou, assim como os meus familiares e nada consegui de grande realizar. Com efeito, compreendi que Deus de mim queria penitência e contempla­ção, e foi o que fui buscar fazer, contudo, mesmo na minha expiação e na minha solidão, me foi tirado o sossego de poder a Deus con­templá-Lo, uma vez que, eu era tido como a um pária pela socie­dade! Além disso, as pessoas me chamavam de todos os predicados negativos que se possa atribuir a um homem, pelo fato de me terem como a um va­gabundo. Portanto, peço ao senhor, que se não fui o suficientemente bom para Deus, que interceda por mim para que Ele me remire dos meus pecados! Em suma, nada mais consegui fazer, ainda que eu tenha se esforçado para obrar.

Isto posto, o anjo, então, ao homem já quase morto respondeu-lhe:

— Tu viveste conforme foste à vontade de Deus! Não buscastes as coisas mundanas para satisfazer-se em corpo, e nem para ostentar ao próximo as tuas conquistas. Não obstante, por sua parte, viven­ciou uma vida repleta de luz! Porquanto, mesmo em sua miséria, sempre viste a tudo e a todos como sendo a grande obra de Deus. Por tudo isso, assim está tu hoje, pronto para partir, e eu aqui estou, pronto para te levar.

Diante disso, o homem sussurrou ao anjo as suas últimas pala­vras, dizendo-lhe:

— Que assim seja! — exclamou. — E que Deus me dê o con­forto no paraíso! Porém, ainda que eu não o tivesse durante a vida na Terra, de qualquer forma, vivi semelhante a um rei! Conquanto, habitei no esconderijo do Altíssimo, a sombra do Onipotente, por­tanto, agora estou pronto para descansar.

Finalmente, aquele homem faleceu. E morto em carne, ressusci­tou em espírito! Por isso mesmo, foi que o anjo veio lhe buscar, para levá-lo de volta a morada eterna, que é o reino dos céus. E passado muitos anos, as pessoas ainda falavam sobre esse anacoreta, que mesmo em sua miséria, nunca deixou de a Deus todos os dias louvá-Lo, e a luz do sol agradecer por ter lhe atribuído mais um dia de vida, sobretudo diante de dificuldades e provações.

Por fim, o anjo comentou:

— Agora, pois, tu descanses do corpo e ressuscites em espírito! De tal sorte que, viveste uma vida de amor a Deus e de sacrifício ao próximo. De ti nada julgarei! Por cuja causa, foste santo diante dos homens, e justo aos olhos do Eterno. Amém!

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Sinopse

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